O impacto da arte na saúde mental das comunidades periféricas.

 O impacto da arte na saúde mental das comunidades periféricas.

Por Fernanda Matos

Quando o assunto é saúde mental, o imaginário comum logo associa o cuidado a sessões de terapia, bons hábitos e, em alguns casos, ao uso de medicação. No entanto, essa realidade ainda está distante para grande parte dos moradores das favelas brasileiras. O que resta muitas vezes é a arte, que se torna alívio, voz e resistência.

Nos territórios excluídos, projetos culturais têm se mostrado essenciais para abrir caminhos mais saudáveis, especialmente para os jovens. Oficinas de teatro, música, dança, poesia e grafite ajudam a construir pertencimento e identidade, afastando crianças e adolescentes de ambientes violentos e abrindo portas para novas possibilidades.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em um estudo de 2019, analisou mais de 900 pesquisas e concluiu que atividades artísticas têm efeitos positivos tanto na prevenção quanto no tratamento de problemas de saúde mental. Elas ajudam no controle do estresse, reduzem a ansiedade e diminuem o risco de transtornos como a depressão.

Nos projetos culturais que florescem nas periferias, podemos ver esse impacto. O trabalho do Coletivo Viela Vive, por exemplo, transforma espaços marcados pela violência em pontos de encontro de criação e lazer. Desde 2018, o grupo ocupa a Viela Cacilda de Albuquerque, dando um novo significado ao local e inserindo a arte no cotidiano da comunidade.

O coletivo já reuniu mais de 140 artistas, com poesia, música, grafite, literatura, capoeira, maracatu, discotecagem e intervenções abertas ao público. Essas iniciativas não apenas valorizam a cultura local, mas também criam redes de afeto e escuta. Elas mostram, na prática, que incentivar a expressão cultural também é uma forma de cuidar da vida.

Onde a quebrada encontra sua voz.
Convidamos a artista Gabriela Carvalho (Rueda), do Coletivo Viela Vive, para falar sobre como a arte tem transformado vidas, tanto de forma individual quanto coletiva. 

“Cada vez que a gente pinta um muro, a gente pinta um pedaço da nossa memória.”

Jornal Aborda: Fale mais sobre você.

Rueda: Tenho 25 anos, sou moradora de Osasco e sempre vivi aqui. Todos os meus atravessamentos com a arte urbana surgiram em Osasco, mas também frequento Carapicuíba e Itapevi, que são locais com grande presença da arte popular.

Sou grafiteira, artista visual e também produtora cultural. Além da arte, estou imersa no aspecto burocrático da produção cultural, o que é parte do meu caminho profissional. No futuro, quero trabalhar exclusivamente com isso, mas a arte sempre estará presente na minha vida, não tem como deixar de lado.

Jornal Aborda: Vi que você faz parte de um coletivo Viela Vive, poderia falar mais sobre ele e qual é o seu papel? 

Rueda: Este coletivo surgiu com a intenção de ocupar e transformar um espaço que estava sendo muito afetado por violência e problemas sociais, como roubos e descarte de drogas. A fundadora, Deise, teve um impacto pessoal forte, pois perdeu uma tia em um latrocínio na viela. Então, ela se uniu a Yasmin e outros artistas, para resgatar o espaço. Eu entrei no coletivo em 2020 como produtora, sem inicialmente dar foco à minha arte visual, mas sim ao trabalho de organização. Em 2022, conseguimos o apoio do ProAC, o que nos permitiu consolidar nossas ações e projetos.

Jornal Aborda: Quais projetos têm dentro do coletivo hoje?

Rueda: Sarau Salva, com poetas residentes, Auê Viela, um evento de grafite que revitaliza o espaço físico da viela, já expandido para outras vielas em Osasco e o Cineviela, com exibição de filmes importantes para a cultura periférica e negra. Além disso, também temos a nossa vivência, um evento único que mistura todas essas vertentes, como foi o caso de nossa parceria com o Tomie Ohtake, um evento de formação com vários artistas.

Jornal Aborda: Você também faz parte de outros coletivos?

Rueda:  Sim, o Batuca Aldeia é um coletivo de percussão onde toco Maracatu, algo que comecei em 2020. Com o tempo, aprendi e fui me aprofundando também no coco de roda, samba de roda e samba reggae. Tocar abriu um leque de possibilidades de aprendizado, especialmente para mim, que sempre fui apaixonada pelo carnaval e pelas tradições da música popular brasileira. Hoje, além de Maracatu, continuo aprendendo e me aprofundando nessas outras vertentes.

Jornal Aborda: Como foi o seu primeiro contato com a arte?

Rueda:  Minha trajetória começa no desenho, que se transformou em ilustração, design, comunicação visual e, finalmente, audiovisual. Foi nesse caminho que conheci a produção cultural. Sempre estive envolvida com isso e, para mim, a arte é uma ferramenta poderosa, que pode ser usada em qualquer fase da vida, com uma simples folha branca.

No início, eu fazia arte mais pessoal, como uma forma de refúgio. Com o tempo, passei a trabalhar mais tecnicamente e a me reconhecer como artista. Lembro de um momento marcante no “Viela Vive” com a Fábrica de Cultura de Osasco, onde estávamos organizando um sarau. Faltava uma mesa para apoiar uma tela, e quando pedi, o articulador cultural disse: “Hoje, vocês são artistas, fiquem tranquilos que vamos cuidar de toda a estrutura.” Foi aí que percebi que eu também fazia parte do corpo artístico, como grafiteira, e isso virou uma chave tanto como produtora quanto como artista.

Jornal Aborda: Fora o trabalho como produtora, você também faz trabalhos mais expressivos, como grafite de rua? Dá tempo de expressar algo íntimo? 

Rueda: Bom, o grafite é 100% disso. É um lugar de liberdade. Vou lá, coloco minhas tintas, danço enquanto pinto, e interajo com as pessoas ao redor. Seja em um evento ou na rua, onde pedi o muro para pintar. Esse espaço é para testar, experimentar. 

Eu comecei a desenhar em casa, e me permiti usar novas cores e texturas. Quando chego no muro, tento replicar isso. Claro que tem a técnica, mas, no fim, o grafite é esse espaço de liberdade para criar, para testar. Em outros lugares, talvez não seja assim, não tenha essa liberdade, mas no grafite, estou lá para expressar.

“Aquilo foi um alívio para mim, porque eu estava me desconectando das outras preocupações. Eu estava focada só naquele momento, naquele lugar.”

Jornal Aborda: O grafite é também sua forma de lidar com conflitos internos e emocionais?

Gabriela (Rueda):  Sim, lembro de momentos muito difíceis da minha vida em que eu só pensava em chegar no evento. Eu não conseguia pensar em mais nada, além de, tipo, “amanhã tem evento e é lá que vou estar tranquila”. Naquele momento, foi um dos mais difíceis da minha vida, e eu só conseguia pensar em acordar no dia seguinte. Eu só queria acordar e sobreviver até o dia seguinte. Eu ia fazer um trajeto de duas horas sozinha para chegar no local onde ia pintar. E lá, aconteciam várias coisas: crianças passando, apontando para os desenhos, pessoas me oferecendo ajuda, como água. E realmente, não sei o que teria sido de mim sem aquilo.

Você acha que a arte ajuda na saúde mental da comunidade? 

Rueda: Sim, e isso é muito nítido. Principalmente quando a gente fala de pessoas que não são artistas, mas que se aproximam da arte, especialmente pela cultura popular.

Lá no Batuca Aldeia, por exemplo, que acontece na Praça Jesuítica de Carapicuíba, tem gente que desce de casa só porque sabe que vai ter som. A pessoa não canta, não dança, não toca, mas sabe que precisa sair, precisa estar ali. E vai. Pede algo pra beber, observa, se envolve.

É algo ancestral, esse movimento de olhar o outro e se conectar. Você vê uma senhora de 60 anos dançando e se divertindo e aquilo contagia. A música te leva pra outro lugar, você começa a prestar atenção na letra, se emociona… e, de repente, já esqueceu o que te deixava mal dentro de casa. Isso acontece muito na cultura popular.

Jornal Aborda: Você já viu alguma situação em que a arte impactou a vida de alguém nos coletivos? 

Rueda: Com certeza, é difícil escolher uma situação específica. A gente é muito atravessado por essas experiências. Às vezes, um sarau pode salvar o seu mês. Ou encontrar alguém no evento e sentir uma energia que não tem explicação, como se fosse uma parceria instantânea. 

Lembro de um momento, por exemplo, enquanto eu pintava em Carapicuíba. Do outro lado da rua, tinha um menininho que ficava entrando e saindo do portão, e a rua era bem movimentada, então ele não podia atravessar. Depois, ele foi para casa, pegou uma folha e ficou observando. Ele começou a tentar replicar meu desenho na folha. Ele estava, de certa forma, tentando usar meu trabalho como referência. E, no final, eu deixei meu esboço com ele. Foi muito legal ver isso, ele se inspirando naquilo, tentando criar também. Isso, para mim, foi um dos momentos mais significativos do grafite, porque também estava precisando daquele momento.

Jornal Aborda: O que você acha que falta para as pessoas da periferia terem mais acesso a esse tipo de cuidado através da arte? 

Rueda:  A questão do acesso é bem complexa. Muitas vezes, a criança começa a desenhar, mas quando começa a alfabetização, o desenho é deixado de lado. Ou então, a criança é vista como a “artista da família”, mas quando chega na adolescência, a pergunta é: “Como você vai viver disso?”. O acesso realmente é difícil. Instituições e coletivos acabam sendo o lugar de refúgio, onde podemos trocar conhecimentos. Mas além disso, é um processo muito resiliente, e essa resiliência é complexa, porque ela está entrelaçada com várias questões: econômicas, sociais, raciais e de gênero. Um homem que não tem um trabalho CLT, por exemplo, é muito mais estigmatizado do que uma mulher. Isso tudo pesa no acesso à arte e à expressão.

Para o artista, a resistência é algo que vem com ele, porque ninguém tira a expressão artística de dentro de um artista. Mas, ao mesmo tempo, essa resistência é muito difícil, porque o sistema em que vivemos não facilita. Então, é uma luta constante manter a arte viva, mesmo com tantas dificuldades.

Jornal Aborda: Pra fechar: o que muda em você quando está criando? Pode ser uma palavra ou uma frase.

Rueda: Se for pensar numa palavra, acho que é transformação. E se for colocar isso numa frase, me permite ser a pessoa que eu quero ser, cada dia mais.

Jornal Aborda:
Gabi, muito obrigada pelo seu tempo e por ter compartilhado tantos momentos e aspectos íntimos da sua relação com a arte e com o seu contexto.

Rueda: Eu que agradeço. Acho muito importante esse olhar do jornalismo pra arte independente. Normalmente, somos nós que falamos sobre nós mesmos, sobre os nossos atravessamentos, e são raros os momentos em que temos, de fato, espaço, e, mais ainda, alguém de fora com esse olhar atento, interessado em entender nossas preocupações e diálogos. Coisas que são tão presentes no nosso cotidiano, tão intrínsecas, mas que se distanciam muito da vivência de outras pessoas. Então, só agradecer mesmo por essa escuta ativa. Isso é muito importante pra gente.

A escuta ativa, como destacou a artista Rueda, é um gesto de cuidado com as periferias. Quando o jornalismo se permite ouvir, também se torna possibilidade de arte e cura.

 

Fernanda Matos Oliveira

Redatora

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