O direito à cidade excede o centro

No Brasil, desde 2010, o movimento pelo direito à cidade tem se fortalecido como uma das principais demandas sociais. O conceito, formulado por Henri Lefebvre em 1968, surgiu como uma crítica à segregação socioespacial e ao urbanismo funcionalista que reduzia a cidade a um espaço de produção e circulação de mercadorias. Para Lefebvre, a cidade deve ser vivida e apropriada por seus habitantes, não apenas consumida como um produto
Isso significa estar visível, integrado ao cenário urbano como um agente determinante e ser consultado no caso de alterações ou melhorias, como expansões de linhas de metrô, mudanças no trajeto de ônibus e remodelação de paradas para maior conforto térmico – isso considerando apenas o transporte urbano, uma das múltiplas facetas da vida na cidade.
A noção de direito à cidade e sua emergência como luta estão vinculadas aos processos de marginalização de grupos sociais e à sustentação do privilégio de outros, geralmente em áreas centrais, onde os grupos não normativos são tratados como secundários ou invisibilizados. A luta pelo direito à cidade se traduz, por exemplo, no combate à aporofobia, como defende Padre Lancelotti no centro de São Paulo, a maior metrópole da América Latina, ou na busca por mais segurança para mulheres no transporte público, com a designação de vagões de metrô exclusivos para elas. Mas será que o direito à cidade se restringe ao centro?
Na verdade, o direito à cidade expressa a busca por vivenciar o contexto urbano de forma ativa, incorporando infraestrutura e serviços, cultura, comportamento, lutas políticas e as múltiplas identidades de um país plural. Isso envolve não apenas a disputa pelos espaços centrais entre elites e grupos marginalizados, mas também a luta pela vivência do espaço urbano nas periferias.
Na prática, o direito à cidade costuma ser associado à ocupação e disputa dos espaços centrais e metropolitanos, onde estão os recursos e oportunidades. Por isso, movimentos como ocupações urbanas, revitalizações culturais e resistência a remoções em áreas centrais são frequentemente vistos como formas legítimas de reivindicação desse direito.
As periferias, muitas vezes, são tratadas como espaços fora do urbano pleno, como se não fossem parte ativa da cidade. É como um universo deslocado, onde a disputa pelo uso do espaço é minimizada, mas a desigualdade no investimento em infraestrutura, transporte, lazer e cultura é profunda. Isso reforça a ideia de que a cidade “de verdade” está no centro e nas áreas nobres.
Entretanto, as periferias são espaços vitais para a cidade, integradas ao contexto urbano, não são espaços de exclusão, mas territórios de resistência, inovação e produção cultural. Das artes ao ativismo político, elas atuam na formação da identidade urbana e na luta por direitos que se extendem à sociedade como um todo. Se o centro recebe a efervescência do trabalho sustentado pelos privilégios de classe, a periferia apresenta o trabalho que sustenta os laços sociais, afetivos e comunitários. É nesse espaço que a cultura e a identidade local não são suprimidas pelas relações de produção, mas florescem quase integralmente – sendo sufocadas apenas pela ausência do Estado, que falha na efetivação dos direitos de seus cidadãos. Se a invisibilização nos centros tem origem nas dominações de classe, raça e gênero, nas periferias o que se oculta são os direitos da população a acessos que poderiam garantir maior qualidade de vida – permitindo, quem sabe, que a região se desenvolvesse integralmente, tornando o deslocamento ao centro uma escolha, e não uma necessidade.
Mas há outro ponto a se considerar: as periferias são mais que espaços de resistência. É certo que elas resistem à exclusão decorrente da bolha criada em torno do centro, mas também reinventam a cidade por meio de redes comunitárias de apoio, expressões culturais e infraestrutura colaborativa. A periferia também produz inovação e tecnologia, e o olhar especifico desse ponto geoespacial por promover mudanças estruturais significativas, se observados e validados. As periferias são espaços legítimos e vitais para a vida citadina. Não são passivos, mas atuam de forma intensa na construção do espaço urbano, e a consolidação do direito à cidade nesse espaço inclui a participação ativa na definição dos rumos urbanos, o que significa não apenas usufruir da infraestrutura existente ou exigir melhorias, mas influenciar como ela é concebida, distribuída e gerida. A periferia tem direito de atuar, gerir e imprimir significado na gestão do que pode elevar a qualidade de vida se seus cidadãos.
No Brasil, o Estatuto da Cidade (2001) formalizou princípios do direito à cidade, estabelecendo diretrizes para a função social da propriedade e o planejamento urbano participativo. Isso significa que vivenciar a cidade também depende da luta cotidiana por moradia digna, mobilidade eficiente e contra processos de gentrificação, mas essencialmente, se modula na participação. É o reconhecimento da voz e da atividade dos indivíduos, dotados de sua própria percepção do espaço citadino, que torna de fato a cidade um espaço plural e democrático.
Por isso, o direito à cidade não deve se concentrar apenas na acessibilidade ao centro – embora isso seja essencial e um dos passos para uma cidade mais justa e equitativa. O direito à cidade deve garantir que os cidadãos possam exercer, com segurança e estrutura, suas escolhas, manifestar sua cultura e contribuir de forma ativa e consciente para as mudanças desejadas e necessárias. Ele inclui a periferia como parte determinante do espaço urbano, como agente de transformação e de criação, e deve garantir aos seus habitantes o direito à vida plena.
Referências:
BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jul. 2001. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>.
HARVEY, David. O direito à cidade. Lutas sociais, n. 29, p. 73-89, 2012.
LEFEBVRE, Henri. Le droit à la ville. L’Homme et la société, v. 6, n. 1, p. 29-35, 1967.