Como a leitura nas periferias brasileiras se tornou um ato político
Por Fernanda Matos
São Paulo (SP) — Nas praças, vielas, bibliotecas comunitárias e salas das Fábricas de Cultura de periferias como Brasilândia, Capão Redondo e Jaçanã, surge um movimento silencioso, mas poderoso, a leitura como resistência. Para muitos jovens dessas regiões, folhear um livro é mais que lazer, é uma forma de afirmar pertencimento, construir repertório e disputar espaço simbólico em uma sociedade marcada por desigualdades.
Uma nova pesquisa da Poiesis, organização social responsável por gerenciar as bibliotecas das Fábricas de Cultura em oito territórios periféricos de São Paulo, revela dados que quebram estereótipos. Entre janeiro de 2024 e junho de 2025, 70% dos frequentadores dessas bibliotecas eram mulheres jovens, proporção acima da média nacional entre leitoras (61%).
Além disso, as bibliotecas registraram uma média de 197 empréstimos por mês em 2024. Um aspecto bastante interessante é a diversidade de gêneros literários buscados – mangás, literatura negra, LGBTQIAPN+, indígena, clássicos e best-sellers, o que mostra que a leitura nas periferias não se limita a uma ideia de “alta cultura”.
Ifé Rosa, coordenadora artístico-pedagógica das Fábricas de Cultura, afirma que “a periferia nunca deixou de produzir literatura”, mesmo quando era vista como culturalmente invisível. Segundo ela, esses espaços são mais do que bibliotecas, são centros culturais onde a leitura é parte viva do cotidiano.
No país todo, o panorama literário periférico também se expande por meio de coletivos literários. A Periferia Brasileira de Letras (PBL), uma rede nacional coordenada pela Fiocruz, mapeou 292 coletivos literários em nove estados e no Distrito Federal. Segundo a pesquisa PBL 2024, 26% desses coletivos são bibliotecas comunitárias; muitos outros organizam saraus, slams, rodas de leitura, clubes literários e batalhas de rima.
No entanto, esses grupos também enfrentam desafios profundos: o racismo foi citado por 32% dos coletivos, seguido por “violência urbana” (26%) e “desemprego” (24%). Apesar disso, 96% dos coletivos se declararam engajados em causas sociais, e 64% afirmaram que a luta antirracista está no centro da sua atuação literária.
A PBL também promove políticas públicas: em uma chamada pública recente, coletivos periféricos – formalizados ou não – puderam receber bolsas da Fiocruz para desenvolver atividades literárias em suas regiões.
Por que ler na periferia importa (e por que isso é político)
A leitura nas periferias brasileiras não é apenas uma prática cultural, é um mecanismo de empoderamento simbólico. Em um país onde “capital cultural” é muitas vezes desigual (ou seja, nem todos têm o mesmo repertório literário e simbólico), o acesso a livros permite ampliar horizontes, construir repertório e fortalecer a voz crítica.
Coletivos literários periféricos transformam a leitura em ação política, produzem cultura, diálogo e consciência social. Por meio de saraus, oficinas de escrita e projetos literários, articulam a literatura com pautas de cidadania, saúde e justiça social.
O mapeamento da PBL mostra que esses grupos demandam recursos, não apenas livros, mas também apoio institucional, para se fortalecerem. Eles reivindicam políticas de leitura que reconheçam seu valor e sua importância para a democracia cultural.
Parte do desafio é simbólica. Para muitos moradores das periferias, o livro ainda carrega uma aura de “coisa de elite”. Espaços como as Fábricas de Cultura ajudam a romper essa barreira: ao unir mediações, oficinas e acervos diversos, fazem com que a leitura seja não só acessível, mas também afetiva e integrada ao cotidiano.
Leituras de mangás, literatura negra, obras LGBTQIAPN+ e indígenas, combinadas com best-sellers e clássicos, indicam que o livro na periferia não está lá apenas para educar, mas para dar sentido, identidade e potência.
O papel da política pública
Os dados da PBL evidenciam a urgência de políticas que apoiem coletivos literários periféricos: sem formalização, muitos não conseguem captar recursos; sem visibilidade, têm dificuldade de dialogar com governos e instituições; sem estrutura, não conseguem consolidar suas ações.
Além disso, os espaços culturais como bibliotecas comunitárias devem ser considerados parte estratégica das políticas de leitura, saúde e cidadania. Esses locais são pontos de encontro, produção simbólica e resistência, e seu fortalecimento passa por investimentos em acervo, pessoal e mediação literária.
Para os moradores periféricos que frequentam esses espaços, a leitura vai além das páginas. É uma forma de existir, de inscrever suas vozes em uma narrativa cultural que muitas vezes os invisibiliza. É afirmar: “eu leio, eu penso, eu reivindico”.
Enquanto a literatura for tratada apenas como privilégio, a periferia continuará sendo subestimada. Mas, quando a leitura se torna direito e ferramenta de transformação, ela se torna revolucionária.